por Bruno Cava – Com o subtítulo “Introdução a uma espiritualidade sem Deus”, é o livro mais audacioso de André Comte-Sponville. O filósofo iniciou a carreira na tradicional academia francesa, mas sua inquietação não-acadêmica acabou por afastá-lo de bancas e auditórios e currículos online. Passou a escrever mais livremente, quase diletante, de todo modo em clima didático e descontraído. Propôs-se a divulgar a filosofia, na sua vertente materialista, naturalista, humanista e atéia. Publicou obras com títulos frugais como Pequeno tratado das grandes virtudes, Uma educação filosófica e Viver.
Livre do pesadume de notas de rodapé e longas citações, seus livros conseguem articular conteúdos sem atrofiar em lição de escola ou, horror!, auto-ajuda travestida de ensinamento filosófico. Tributário de uma prosa confessional, em primeira pessoa, na melhor tradição de Michel de Montaigne e Blaise Pascal, as obras vertem a ontologia de Epicuro, Spinoza, Nietzsche ou Wittgenstein, em ensaios palatáveis e salpicados de insights, digressões elucidativas e humor inteligente. Correndo por fora do mainstream intelectual, o autor tem sido um êxito editorial, como educador eloqüente, que não hesita em comparecer à televisão para se dirigir ao grande público — por assim dizer fusão (improvável) de Marilena Chauí e Viviane Mosé.
Em O Espírito do Ateísmo, o materialista epicuro-spinozano pretende conciliar-se com o lado espiritual. Sem Deus, transcendência, esperança ou autoridade religiosa; mas com “fidelidade”, “sentimento oceânico”, “serenidade” e “comunhão”. Em síntese, um lado espiritual independente das religiões. Sua meta: explicar como um ateu não precisa renunciar à espiritualidade, e como esta não está associada necessariamente à crença em Deus e menos ainda à filiação religiosa.
Para isso, Comte-Sponville divide a peça em três atos: “Pode-se viver sem religião?”, “Deus existe?” e “Que espiritualidade para os ateus?”.
No primeiro ato, reafirma-se a repulsa por qualquer sistema de autoridade baseado no dogma, na moral institucional, na verdade anunciada — com seus “janízaros do absoluto” e suas cruzadas assassinas. Se Deus existe tudo é permitido, pois não se transige com o absoluto. Por um lado, Comte-Sponville admite que as religiões, quando moderadas e submetidas ao poder civil laico, podem ser úteis como consolo metafísico ou fio condutor de comportamento. Afinal, diante do sofrimento e da morte, cada um se arranja como pode. Quem somos nós para frustrá-los. Mas, por outro lado, sustenta que a religião é dispensável para fundamentar uma ética, logo, a felicidade. Que se pode jogar a água da banheira fora, mas não o bebê.
Daí Comte-Sponville introduzir a sua versão humanista-e-secular de ética não-religiosa. Eis um cristianismo mundanizado, e por isso esboça chamá-lo, paradoxalmente, de “ateísmo cristão”, para então se contentar com “ateísmo fiel”. Isto significa um ateísmo que não prescinde dos valores cristãos, nominalmente a comunhão e a fidelidade. Não rejeita a memória da comunidade e o convívio humanista com as pessoas, no sentido de assistência, caridade, temperança, eqüidade e polidez. Um ateísmo light, entre o agnosticismo pudico e o (ele rotula) “niilismo bárbaro” — tão nocivo e incivilizado à sociedade quanto os piores fundamentalismos religiosos.
O segundo ato, “Deus existe?”, é o menos polêmico. E gerará menos calores nas mãos do leitor ateu. Aqui, Comte-Sponville compila seis cadeias de argumentos para não se acreditar numa entidade pessoal, transcendente e eterna, criadora do mundo, acima do bem e do mal, que gerou o ser humano a sua imagem e semelhança, com o fito de cumprir um plano providencial e secreto, que visa à salvação das almas. Deus do cristianismo, islamismo e judaísmo. Seguem refutações loquazes, elegantes, das célebres provas de Deus — ontológica, cosmológica e física –, bem como os conhecidos argumentos da enormidade do mal e da mediocridade do homem. Capítulo leve, quase burocrático, não fosse a prosa límpida do autor, menos passional que Richard Dawkins, mas igualmente convincente. Até aqui, nada de novo no reino do ateísmo.
O bicho pega é no terceiro ato, a razão de ser do livro.
Convocando usuais referências do cânone ocidental, mas também “orientais”, como Lao-Tsé, Nagarjuna, Krishnamurti e Prajnanpad, o autor pretende estabelecer que o ateu também tem espírito, ou melhor, um lado espiritual. Nada tem de anímico, transcendente ou participante do divino, mas também não possui sentido figurado. É espírito mesmo. Trata-se de um atributo que distingue o humano dos demais animais. Que faz o homem contemplar uma bela paisagem ou gozar estupefato de uma sinfonia de Mozart. E permite, assim, que uma criatura finita e relativa possa experimentar o absoluto e o ilimitado.
A mãe dos argumentos dele é uma experiência absolutamente pessoal do absoluto, um sentimento do Todo que, na sua inteireza e desproporção, seria inenarrável. Epifânica. É uma vivência reveladora, num “sentimento oceânico” que várias pessoas relatam em certas ocasiões singulares. Um amor por todas as coisas que dá vontade de chorar, uma revelação de plenitude imensamente serena; uma aceitação total do enigma agasalhado no peito; uma prostração apaziguadora e venerável, pela insignificância do homem diante de um universo infinito, do universo indiferente, do “eterno silêncio desses espaços infinitos”.
Ousado, Comte-Sponville confessa filiar-se ao misticismo, ao mistério, ao “fazer silêncio”. Subscreve Ludwig Wittgenstein, no seu mergulho calado nos confins da lógica e da ontologia. Subscreve Martin Heidegger, no seu escutar do Ser, nas entranhas da floresta negra da existência.
São sessenta páginas tentando verbalizar essa epifania que, para o autor, inaugura e possibilita uma espiritualidade atéia — nada contraditória com seu materialismo e naturalismo.
Audacioso, porém impotente.
A impressão que tive, ao finalizar O Espírito do Ateísmo, é que Carlos Drummond foi mais sintético e expressivo, mais feliz, com o poema “A Máquina do Mundo” — entre outros de sua fase metafísico-sentimental. É curioso como tais teodicéias místicas sempre e sempre se realizam com viagens para a floresta, em imersões na natureza silvestre. Quer diante de um lago bucólico, de um velho plátano, de uma cachoeira tropical, de uma estradinha de Minas Gerais… o “sentimento oceânico” jamais ocorre no burburinho da metrópole, na azáfama de vozes e cheiros das ruas e praças. A meditação pressupõe paisagens amplas e contemplativas, e afasta o homem de suas preocupações (supostamente) menores e mais imediatas.
Mas a fuga da cidade é também o distanciamento da política. A estética da aceitação, da escuta do Ser e a contemplação assombrada, não importa, todas elas contrariam uma ética da revolta. Na medida em que não se revolvem e se remordem com o absurdo, mas o abraçam e se contentam. Esse contentamento me enche de ódio. Fazem do absurdo um bonsai e não uma máquina de guerra, e assim adormecem no conformismo deslumbrado.
Mais uma vez Camus foi clarividente, quando escreveu que só o ateísmo é pouco, pois a negação pela negação nada produz. O ateísmo não viceja seus frutos podres se não passar ao campo da prática, na revolta no seu tempo, contra o seu tempo. Viver absurdamente demanda que o absurdo se conjugue com o orgulho e a revolta, numa recusa militante à finitude, à totalidade, ao absoluto, isto é, a todas as formas de fraqueza, conciliação e subjugação. O homem exila-se em sua vida menos por se prostar e aceitar sua falibilidade e torpeza, do que por insubmissão n´importe quoi.
Mesmo nos últimos suspiros, sentirá o ciúmes daqueles que ficam, que poderão saborear um sorriso, uma risada, um bom vinho ou a boca da mulher. “Eu irei para debaixo da terra, e você, você caminhará ao sol!” O ateu revoltado morrerá irreconciliado, sua sabedoria não virá jamais. E não escreverá odes ao poente nem se inebriará com a sua insignificância. Disso, no máximo, poderá rir, com timbre trágico, nunca aceitar.
André Comte-Sponville assume uma ética do apaziguamento. Pretende saciar a sua fome de absoluto com uma outra religião. Religião pós-moderna? pós-materialista? Uma religião orientalizada (nunca oriental), um misticismo desesperado, um pessimismo passivo disfarçado de contemplação, na mesma linha de Arthur Schopenhauer, e de infindáveis autores esotéricos contemporâneos. Prefere o silêncio da floresta e a sua clara noite, à alegria carnavalesca da metrópole, ao espetáculo de dança e sangue da política mundana. Prefere os olhos e as pupilas cansadas aos dentes e mandíbulas vorazes. Zaratustra não foi ao deserto para reconciliar-se com o mistério, mas para sofrer até a última gota de absurdo e não se purificar.
Na busca por simpatia universal, Comte-Sponville não concilia o ateu com o seu lado espiritual. Domestica-o com a “espiritualidade” e termina por oferecer apenas mais uma religião da decadência — tão contemporânea, tão débil.
Fonte: Amálgama ( http://www.amalgama.blog.br/11/2010/ateismo-debil/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário