quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
A Importância e a Atualidade dos Pais da Igreja
Aléxis Peña-Alfaro *
Qual é o lugar dos Pais da Igreja para os cristãos de hoje? Muitos fiéis não conhecem a história da Igreja nem muito menos o papel que os Pais da Igreja ocupam na formação da fé cristã. Muitos não suspeitam que a fé que eles professam hoje se deve em grande parte à luta que esses Pais desempenharam na formulação dos dogmas e das doutrinas da Igreja. As Santas Escrituras não explicitam algumas questões fundamentais da fé cristã. Cristo tem duas naturezas? É homem e Deus ao mesmo tempo? Se tem duas naturezas, uma prevalece sobre a outra? Estão misturadas? Tem duas vontades, uma divina e outra humana? Deus é trino? Deus é uno?
Essas e outras questões da fé cristã, que não foram explicadas pela Escritura Sagrada, os Pais da Igreja, por meio dos Concílios Ecumênicos, definiram, como, por exemplo, através do Símbolo da Fé – o Credo. Ao mesmo tempo, os Pais da Igreja se dedicaram a combater as heresias, os erros que destruíam a fé verdadeira e induziam os fiéis a distorcer a fé transmitida pelos apóstolos e que cada geração de cristãos deve passar às outras, isto é, a característica central da Igreja apostólica.
São os Pais da Igreja todos aqueles que durante os primeiros séculos da Igreja Indivisa consolidaram a doutrina e os dogmas da Igreja no combate ao erro e às heresias. Como se vê, foram de fundamental importância para a Igreja. Daí surgir a pergunta: eles têm lugar no século XXI? Infelizmente a resposta é não! Por vários motivos!
Em primeiro lugar, os Pais da Igreja são considerados na interpretação ocidental racionalista, como personagens históricos ultrapassados, estando superados pelos simples fato de pertencerem a outra geração histórica. O passado da Igreja é passado. Isso é fruto de uma mentalidade histórica e cultural que podemos definir como modernista. A mentalidade modernista considera todo o passado como inadequado ao momento presente. Apenas se interessa pelo momento atual. Assim sente e pensa o homem contemporâneo. Está subjacente nele uma idéia de progresso em que o presente tem mais valor que o passado. Isso é um tremendo preconceito e um reducionismo, fruto de uma mentalidade positivista que permeia uma visão de mundo científica que foi aos poucos introduzida na teologia ocidental.
Os Pais da Igreja perderam valor a partir da modernidade, especialmente no ocidente, onde a cultura e o culto ao humanismo contaminaram a eclesiologia e a teologia, tanto católica quanto protestante, dever-se exclusivamente a essa escolha metodológica de valorizar os métodos e contribuições das ciências sociais e humanas: o materialismo histórico, a crítica textual, o relativismo cultural, o psicologismo e tantos outros instrumentos que poderiam ser valiosos auxiliares, suplantam a Tradição da Igreja e sua experiência espiritual.
O projeto da modernidade iniciado no Renascimento rompeu com a Antiguidade e a Reforma, sua filha predileta, criou a noção de autonomia do homem religioso em relação à instituição e à Tradição. O ideal da modernidade é um homem autônomo e independente da natureza e de Deus, por isso a ruptura com o passado implicou o esquecimento também dos Pais da Igreja. A rigor, o Renascimento iniciou o culto ao "homem". O humanismo decorrente disso inaugurou uma teologia imanentista, por mais que alegue considerar a transcendência de Deus.
Por isso não deve espantar a tremenda crise de identidade de muitos cristãos, cujas denominações flutuam ao sabor das modas teológicas das teologias oportunistas e dos acordos políticos, que visam atender às demandas do momento. As Igrejas administradas como empresas e balcão de negócios e acordos políticos lutam por arrebanhar quantidades ao redil.
A grave crise doutrinal e dogmática dos cristãos ocidentais é muito profunda. Podemos definir esse estado de coisas como uma perda de identidade. Uma Igreja que perdeu o contato com suas raízes seca irremediavelmente, conforme o ensino da parábola do semeador.
As Igrejas da modernidade são grupos de religiosos revoltados com os seus pais, dos quais têm "vergonha", isto é, apenas uma etapa do crescimento dos adolescentes, mas a fé pressupõe uma escolha de adultos, conscientes do que são e da sua origem. Uma das grandes conquistas da modernidade talvez seja a liberdade e autonomia do sujeito, mas isso cobra um preço muito caro, que nem sempre se quer pagar: a responsabilidade pelas escolhas. A pessoa define o que quer acreditar. Estamos no período da religião à la carte, ou melhor, self-service. Cada um escolhe o seu prato e se serve à vontade.
A sociedade contemporânea, com seu culto e tributo à juventude, se rende e glorifica o efêmero e o passageiro; tem dificuldade para reconhecer e enxergar o valor dos antepassados. Uma sociedade da imagem e do espetáculo, que perdeu de vista há muito tempo o lugar e a função dos Pais da Igreja. Desde o Renascimento ocorreu um gradual processo de esquecimento da Metafísica e da Transcendência. A cultura moderna tornou-se materialista em todas as dimensões e atividades. Vivemos no reino das quantidades: tudo é medido e pesado em conseqüência do modelo científico de busca da verdade. Essa forma de ser e pensar penetrou também na teologia e a vida espiritual se tornou uma "coisa". A perspectiva da eternidade escapa pelas mãos, assim o Reino de Deus é aqui mesmo, imanente, reduzido a este mundo, onde a busca do sucesso é a meta religiosa.
A sociedade atual se transformou em sociedade "sem pais" ao contrário de Israel, que aprendeu a invocar o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó. Essa experiência continuará com o cristianismo que canta o Deus de Jesus Cristo, o Deus dos Apóstolos. "Não chameis ninguém de pai (...), pois um só é vosso Pai: Deus" (Mt 23:9). É ele que nos cria e nos engendra como filhos. Saber isso nos torna livres para amar aqueles por quem é produzido este ato de engendramento, sejam nossos biológicos ou espirituais, sem idolatrá-los, sem considerá-los como causa primeira. Diz S. Paulo: "Fui eu que pelo Evangelho vos gerei em Cristo Jesus" (I Co 4:15).
Segundo Evdokimov, "um pai espiritual nunca é um diretor de consciência", nunca engendra "seu filho espiritual", mas um filho de Deus, adulto e livre. O discípulo recebe o carisma da atenção espiritual, o pai recebe o carisma de ser o órgão do Espírito Santo. Assim, a conclusão necessária à pergunta "quem são os nossos país?" será: quem nos transmitiu a fé em Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, a doutrina da Igreja, seus dogmas e a Tradição transmitida pelos sucessores dos discípulos dos Apóstolos até a consumação dos séculos. "Minha mãe e meu irmão são aqueles que escutam a Palavra de Deus e a cumprem" (Lc 8:21).
A perda da identidade do cristianismo contemporâneo corresponde ao esquecimento do nome do próprio pai. Não lembra nem o nome nem os ensinamentos dos seus pais. Não pode lembrar exatamente qual é a sua fé. Afinal de contas, qual é o nosso Credo?
Os Pais da Igreja desempenharam uma tarefa fundamental: guardar o depósito da Fé tal como S. Paulo exige do seu "filho" e discípulo Timóteo (2 Tm 1:13-14). Os Pais da Igreja são todos aqueles que viveram e deram exemplos de coragem, fidelidade e amor a Cristo e construiram a Igreja como tarefa dada pelo próprio Cristo.
A Tradição apostólica da Igreja se manifesta na fidelidade à transmissão da fé recebida de Cristo e da qual são os apóstolos e os seus sucessores, alguns dos quais são bispos, que denominamos de Pais. Estes são referências que norteiam a vida da Igreja.
A tradição protestante, no século XVI, rompeu com os ensinamentos dos Pais, mesmo quando os reformadores empenharam-se em mantê-los como parâmetros de interpretação das Escrituras, terreno difícil como sabemos, pois a livre interpretação dos textos sagrados colocou o pressuposto de que cada fiel é livre para interpretá-lo. O resultado não poderia ser mais desastroso: um mesmo texto sagrado deu origem a uma infinidade de denominações que continua crescendo cada dia. Calcula-se que existam mais de 600.000 denominações cristãs originárias do protestantismo.
O teólogo protestante André Benoi, na década de 1960, já alertava, na sua obra A Atualidade dos Pais da Igreja, editada na Suíça, para o grande risco que as "igrejas jovens" corriam de esquecer o passado que as precedeu. Infelizmente, esta situação quarenta anos depois, somente piorou. O mesmo autor lamenta a pobreza litúrgica protestante e a questão doutrinal e dogmática, fruto do esquecimento dos Pais e da Tradição, pois Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e amanhã (Hb 13:8).
No outro extremo, encontramos a tradição latina, que embora fundamentada na mesma tradição patrística, sofre de amnésia, olvida a Patrologia e particularmente a Grega, restringindo-se a apenas alguns autores de referência: Sto. Agostinho, S. Clemente de Roma e outros. Podemos afirmar, sem exagero, que a teologia católica, depois do Vaticano II, enfrentou grandes turbulências, das quais ainda não se recuperou. Quais são os frutos desse Concílio, do "aggiornamento", depois de quatro décadas?
O modernismo, o relativismo e, principalmente, o racionalismo científico tomou conta da sua teologia. O apreço pelos métodos das ciências humanas e sociais tornou-se regra de fé. Como resultado, vemos nos seminários opções ideológicas as mais variadas, quando não político-partidárias, e um crescente ceticismo e esfriamento da fé. Pelo menos estas são observações dos próprios fiéis católicos a respeito da formação dos seus sacerdotes e do resultado de décadas de ativismo social que viu crescer o pentecostalismo e o decréscimo do rebanho católico a cada ano. Se aqueles que ensinam perderam a fé, o que será dos fiéis?
Não foi por acaso o poeta Dante Alighieri, autor da Divina Comédia – escrita entre 1307-21 – que, no Canto XII do Paraíso, colocou S. João Crisóstomo junto com ilustres santos no quarto Céu, demonstrando o alto apreço que a comunidade latina tinha por ele na Idade Média!
Como são atuais os ensinamentos e, sobretudo, o exemplo de S. João Crisóstomo! Para uma sociedade de consumo e do espetáculo, ele oferece o ascetismo e a moderação; para o amor e o apego ao dinheiro, ele oferece o desprendimento e amor pelos pobres, sem demagogia, por amor a Cristo e não aos holofotes; para a bajulação aos poderosos, ele nos mostra sua liberdade de consciência e destemor; para uma sociedade hedonista, ele lembra que a vida é efêmera e passageira, que nosso destino é a eternidade e o Reino de Deus.
As teologias contemporâneas ignoram os Pais da Igreja, perderam a fé e a identidade. Se não sabemos quem somos, nem de onde viemos, também não sabemos para onde vamos. A perda da identidade é o risco que se corre na Pós-modernidade: fragmentação, ruptura e dispersão. Não esquecer as palavras do Mestre: "Estarei convosco até a consumação dos séculos" (Mt 28:20).
NE: A Primeira Reforma Protestante, especialmente o Anglicanismo – em sua tarefa necessária e inevitável – emprestou grande valor ao pensamento dos Pais da Igreja. A distorção do livre exame de livre acesso a livre interpretação, a teoria da "apostasia universal" da Igreja, a eclesiologia localista (congragacionalismo), o literalismo ou o liberalismo, foram lamentáveis episódios setoriais radicais posteriores, que se distanciaram dos postulados iniciais. A leitura do Livro de Oração Comum (LOC) atesta essa continuidade com os princípios dos Apóstolos, dos Pais Apostólicos e dos Pais da Igreja.
* O Arcipreste Aléxis Peña-Alfaro, psicólogo e professor universitário, é Vigário Geral da Igreja Ortodoxa Sérvia no Brasil.
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Um comentário:
Graça e paz vos sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus e de Jesus, nosso Senhor, amado irmão.
Sinto-me mui alegre, em ter o amado acompanhando nosso humilde blog.
Em 2009, que o Deus de Paz e Amor, ainda mais vos fortaleça em sabedoria para que andeis como é digno da vocação com que fostes chamado, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-nos em amor, procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz.
E em nenhum só dia nos esquecer da divina ordenança: “anunciais a morte do Senhor, até que venha”. Aleluia!
Fraternalmente.
James
www.jesusmaioramor.blogspot.com
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